À Superintendência de Audiovisual – SupAud
Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro – SECEC-RJ
Baixada Fluminense, 14 de junho de 2023.
Prezada Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro,
POR UM CINEMA E AUDIOVISUAL DESCENTRALIZADOS
Dada a importância da participação da sociedade civil e dos trabalhadores do audiovisual na elaboração dos editais públicos referentes à aplicação da Lei Paulo Gustavo – nós, do movimento Baixada Filma, expressamos publicamente a nossa convicção sobre a importância crucial da descentralização da execução da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195, de 08 de julho de 2022) para o desenvolvimento cinematográfico e audiovisual do Estado do Rio de Janeiro.
O Baixada Filma é um movimento coletivo que nasceu em 2018 com o intuito de pautar a territorialização e a distribuição justa do uso dos recursos públicos nos editais e políticas públicas do Estado do Rio de Janeiro e da União, além de fortalecer a cena de cinema e audiovisual na Baixada Fluminense. O movimento é diverso, contém cineclubes, coletivos, produtoras, realizadores e técnicos do audiovisual. Nos enxergamos como parte da classe trabalhadora deste setor e é por isso que nos organizamos coletivamente para a escrita desta carta de forma a colaborar com o debate público do Cinema e o Audiovisual, sob a nossa perspectiva.
Ficamos negativamente surpresos com a carta escrita e assinada pela SICAV, ABRACINE e API, enviada à Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, na qual questionam as políticas de interiorização no que diz respeito à execução da Lei Paulo Gustavo nos incisos I e II. Entendemos como uma grande conquista o Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura (PEFIC) ter estabelecido alíquotas para a distribuição de recursos, com a determinação de um máximo de 40% para a capital e de um mínimo de 60% para o interior.
A capital receberá uma verba municipal no valor de R$ 48.359.619,69, o que significa cerca de 35% do valor total que o Estado do Rio de Janeiro irá receber da LPG. Sendo assim, as produtoras e os realizadores da capital poderão participar tanto dos editais do Estado quanto do município do Rio. Entendemos que a capital está tendo o tamanho que merece dentro da Lei Paulo Gustavo e não vemos evidências que as produtoras da capital estejam sendo prejudicadas por tal política de descentralização.
Felizmente, desta vez, a própria lei está ao nosso lado. A Lei Paulo Gustavo foi concebida com o objetivo de descentralizar a produção audiovisual e promover o desenvolvimento sustentável, comunitário e local desse setor, vislumbrando um legado estrutural para o Brasil. Somos profissionais qualificados, cientes das especificidades exigidas pela produção cinematográfica e audiovisual. Em comparação com a infraestrutura da capital do Rio de Janeiro, ocupamos uma posição desfavorável nesse cenário desigual em que se desenvolveu a indústria audiovisual. Representamos algo que o sistema não esperava: escolhemos o cinema, sem por ele termos sido escolhidos e mesmo assim, seguimos neste caminho.
Ao se observar os números apontados na referida escrita, tudo fica bastante explícito: concentração gera concentração! Os números não são neutros, demandam análise e uma perspectiva posicionada. Como não questionarmos a enorme concentração de 1193 empresas fluminenses produtoras audiovisuais brasileiras independentes cadastradas na Agência Nacional do Cinema – Ancine e apenas 68 sediadas no interior? Isso revela a falta de política pública que vem sendo dedicada para a área do audiovisual no interior do Estado. Como revertermos essa lógica centralizadora? Com políticas públicas que possam reverter tais desigualdades históricas e fortalecer a multiplicidade do panorama cinematográfico e audiovisual fluminense.
A Lei Paulo Gustavo apresenta um desafio que é incentivar o audiovisual em regiões que não têm essa cultura de incentivo. Para de fato enfrentar a desigualdade não podemos ter um viés tradicional sobre o que é incentivar cinema e audiovisual. Os editais da SECEC devem ter a cara do Estado do Rio de Janeiro e atender a cidade do Rio, a região metropolitana e o interior do Estado de forma plena e justa.
As dinâmicas de produção audiovisual na Baixada Fluminense são diferentes da capital do Rio, há especificidades que precisam ser observadas. Nos territórios populares, as periferias metropolitanas, assim como no interior, não há um ambiente de estímulo à economia criativa, visto a ausência de legislações que estimulem a abertura de empresas do setor criativo, de leis municipais de incentivo à cultura, através do ISS, escassos equipamentos públicos como teatros e centros culturais que não dão conta dos 4 milhões de habitantes e da ausência de fomento direto municipal. Antes da Lei Aldir Blanc somente dois editais públicos foram executados pelo poder público municipal em toda a história dos 13 municípios da região, Nova Iguaçu em 2010 e Duque de Caxias em 2020. Além disso, soma-se às condições socioeconômicas da população com esta falta de incentivo público, tornando a criação de empresas (ME) com CNAEs específicos em audiovisual um caminho, por vezes, inacessível para os trabalhadores do audiovisual na Baixada.
Segundo o anuário da ANCINE 2021, Duque de Caxias lidera a lista de Municípios com pior relação habitante por sala de exibição, dos municípios com mais de 500 mil habitantes. Nova Iguaçu aparece em quinto lugar. Em contrapartida, os Complexos de exibição que obtiveram maior público (2021), o Multiplex Duque de Caxias, está em terceiro lugar, e Nova Iguaçu em nono. Há uma enorme demanda por cinema na região. Especificamente na região Sudeste, dos Municípios com maior relação público por sala (2021) São João de Meriti ocupa o segundo lugar, Duque de Caxias o terceiro e Nova Iguaçu o quinto. Dos Municípios mais populosos sem sala de exibição (2021), infelizmente a cidade de Belford Roxo lidera em primeiro lugar, sendo o único município com mais de 500 mil habitantes, sem sala de cinema e Magé aparece em quinto lugar. Ou seja, há poucas salas para atender a população da Baixada Fluminense, que lota os cinemas, demonstrando que há público, mas não há equipamentos culturais e incentivo local, estadual e federal para exibição.
Em meio a tantos apesares, ousamos fazer do cinema e do audiovisual nosso ofício e dadas as adversidades econômicas e políticas, encontramos outras formas de democratização da produção e criação audiovisual. Assim, criamos condições reais para a realização audiovisual na Baixada Fluminense trabalhando com baixos orçamentos, participando de editais menores e nos organizando em coletivos, ao invés de produtoras. Sem imitarmos modelos industriais de Hollywood ou mesmo da capital, inventamos formas colaborativas e comunitárias para fazer um cinema possível, um cinema das margens, um cinema das periferias, um cinema que insiste e persiste, ampliando condições e possibilidades de novos sujeitos periféricos vislumbrarem essa profissão também.
Acreditamos que esse fomento, com potencial de fortalecimento e expansão, irá revelar novas perspectivas, ampliar horizontes e narrativas diversas. Somos produtores de um cinema e um audiovisual que não se submetem à sombra da capital, mas brilham com luz própria. Por isso, pleiteamos um entendimento de cinema e audiovisual que vá além das produtoras, dos CNAES específicos e que valorize a dimensão processual, os coletivos e os realizadores independentes. A descentralização é fundamental e é preciso compreender as desigualdades e especificidades de cada território para criarmos de fato uma política que descentralize e produza igualdade de oportunidades. Acreditamos no legado que a LPG pode gerar para o Estado do Rio de Janeiro e esperamos contribuir para o fortalecimento de um fazer cinema e audiovisual mais democrático, inclusivo e diverso.
De forma propositiva, solicitamos que o proponente do inciso I e II da lei Paulo Gustavo possa ser pessoa física ou MEI, para os editais no valor de até R$50 mil reais. Para as linhas acima de R$ 50 mil até R$ 200 mil, propomos que o proponente possa ser MEI. Já que não há obrigatoriedade pela LPG de que o proponente seja um ME cadastrado na ANCINE. E para linhas com valores acima de R$200 mil reais, entendemos que as propostas devem ser avaliadas prioritariamente pela comprovação de atuação do proponente no território e seu portfólio. A proposta também deve se comprometer a realizar a atividade na Baixada e a ter 70% de sua equipe composta por trabalhadores da região.
Além disso, acrescentamos outra importante proposição: a elaboração de um mapeamento abrangente do cinema e audiovisual desenvolvido na Baixada Fluminense e no Estado do Rio. Para que sejam formuladas políticas públicas adequadas aos modos de produção local, estimulando seu desenvolvimento de forma sustentável e em diálogo com as especificidades de cada território. Desta forma, acreditamos que a Lei Paulo Gustavo irá cumprir com seu papel e promover uma descentralização nunca antes vista na história do Estado do Rio de Janeiro.
Desejamos que nossa carta colabore para a implementação da Lei Paulo Gustavo de forma justa e plena para todos os territórios e estamos à disposição para seguir esta conversação.
Atenciosamente,
Baixada Filma.
baixadafilma.com.br
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